Farinha de mandioca: sustento, tradição e ancestralidade

23/4/24
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Redação Start

Profissionais que atuam no setor destacam a importância da raiz para o sustento de comunidades

Foto: Arquivo pessoal - Wilber Oliveira
Foto: Arquivo pessoal - Wilber Oliveira

Macaxeira, Aipim, Mandioca. São muitos os nomes dados a um único tubérculo tradicional brasileiro. Esse produto com origem na América do Sul é responsável pela base alimentar de diversos povos tradicionais, fazendo parte de pratos típicos espalhados por todo Brasil, mais precisamente na região amazônica. Além disso, o tubérculo possui uma variedade infinita de alimentos, como bolos, pães, doces e pratos salgados e, especialmente, a farinha de mandioca. Em harmonia com a floresta, tradicionalmente cultivada e aperfeiçoada pelos povos ancestrais há milhares de anos, a mandioca é rica em nutrientes para o corpo humano.

Em um pequeno município localizado no Estado do Acre, a produção de farinha de mandioca se destacou tanto que, hoje, o município é reconhecido pela variedade de farinhas e produção em escala. Um artigo desenvolvido pela EMBRAPA mostra que a produção da tradicional farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul iniciou quando a base da economia do Acre ainda era a extração da borracha e o produto era exportado para outros estados da região para servir como a principal fonte de alimentação energética dos seringueiros.

Em entrevista, Murielly Nóbrega, colaboradora do SEBRAE Acre, afirma que a farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul, no Acre, é um produto regional artesanal, que além de garantir a segurança alimentar das famílias da região e gerar renda para as comunidades locais possui grande valor cultural. Segundo ela, o produto foi trazido por migrantes nordestinos e adaptado por agricultores indígenas e não indígenas locais.

“É mais do que uma tradição secular, é uma identidade local que faz jus ao nome por sua notoriedade e reconhecimento de um produto de fabricação tradicional com qualidade. Desde 2017, e sendo a primeira do Brasil, a farinha de Cruzeiro do Sul possui o selo de indicação geográfica (IG), que reconhece a qualidade e tradição de um produto a partir das condições ambientais e modo de fazer local. Posteriormente, seu modo de fazer foi salvaguardado como patrimônio cultural do estado, e ainda, recentemente a Comissão de Agricultura (CRA) aprovou o projeto de lei que concede o título de Capital Nacional da Farinha ao município de Cruzeiro do Sul, no Acre”, comenta Murielly.

Em resumo, a história conta que a necessidade do imigrante nordestino de buscar alimentos, aliada ao isolamento territorial e convívio familiar, fez da mandioca encontrada nos roçados cultivados pelos indígenas um elo que determinou o início da produção e mistura de hábitos. Segundo ela, ao longo desse período até os dias atuais, o saber-fazer foi preservado por gerações, garantindo a identidade diferenciada e notoriedade da farinha. 

Ela ressalta ainda que, com a evolução político-administrativa do Estado do Acre e a passagem da estrutura do Departamento do Juruá, cuja capital era Cruzeiro do Sul, para os sete municípios, incluindo o novo Município de Cruzeiro do Sul, o produto, que já era reconhecido por sua tipicidade regional, manteve a notoriedade pelo antigo nome da capital departamental. Assim, o reconhecimento de uma identidade territorial, vinculado à tradição e qualidade secular do produto, remete sua potencialidade para o estabelecimento de uma indicação geográfica por procedência para a “farinha de Cruzeiro do Sul”. 

Ela destaca que, inicialmente, o processo produtivo da farinha de mandioca era por meio de um processamento em unidades de beneficiamento “casas de farinha” caracterizadas pelo baixo nível tecnológico e de controle de qualidade, baixo apoio técnico, e dificuldade para comercialização. Porém, com o apoio de diversas instituições, projetos e captação de recursos, bem como, a automatização de algumas unidades, nos últimos anos esses desafios estão sendo mitigados.

“Na regional do Juruá, grande parte do cultivo da mandioca é voltado para a produção de farinha, tal fato, deve-se ao diferencial na qualidade e na aceitação de mercado que o produto possui, o que possibilitou a consolidação desta nos mercados regionais e atualmente nacional em nichos específicos para produtos com qualidade superior, atingindo em alguns casos até o dobro do preço em relação às farinhas de outras regiões”, comenta Murielly.

Wilber Oliveira, engenheiro agrônomo, explica que a farinha de mandioca é um símbolo regional, ela representa no Acre a base da alimentação das famílias, um alimento rico e saboroso. Além disso, é o item agrícola de maior produção, produzida quase 100% em zona rural, ela emprega milhares de pessoas em diversos estágios da produção, desde a limpeza da terra para o plantio até a comercialização. Segundo ele, a farinha é uma mistura de culturas, e o Acre, povoado por indígenas, aos poucos foi sendo alvo de morada a partir do êxodo do nordeste. A partir disso, o saber fazer do nordestino com a matéria prima da região, ganhou notoriedade, sabor e qualidade.

Foto: Arquivo pessoal - Wilber Oliveira
“Os produtores têm sofrido com a falta de assistência técnica na região. Necessitam de orientações que mostrem a viabilidade de produzir, aplicando técnicas de conservação de solo, assim evitando derrubar e abrir novas áreas em meio às florestas. Sofrem com a logística que a região só tem uma rota de saída e que inclusive não é de qualidade, o que torna o frete para outras localidades do país um valor absurdo. Por se tratar de produtores da zona rural, a grande maioria não tem conhecimento suficiente para negociar seus produtos com os atravessadores, o que faz venderem com o preço, às vezes, muito abaixo do valor”, explica Wilber.

Ele aponta ainda que a farinha é o maior produto agrícola fabricado em todo o estado, o extrativismo também é muito presente, mas a farinha ainda é o maior, ela gera empregos de forma direta e indiretamente, movimentando toda uma comunidade. 

Para a produtora rural Maria José, a produção de farinha de mandioca é, além de sustento de muitas famílias, a fonte de renda de mais de 70% das famílias do Vale do Juruá. Segundo ela, existem inúmeros desafios a serem enfrentados, mas, por meio da ajuda do Sebrae Acre, os produtores rurais têm tido conquistas muito positivas no preço e o selo de indicação geográfica da farinha de mandioca.

Foto: Arquivo pessoal - Wilber Oliveira
“A produção de farinha de mandioca gera emprego e renda para os produtores rurais, além de sustentabilidade no processo produtivo. Durante a produção, utilizamos as próprias cascas da mandioca como adubo para usar na horta e plantar verduras. Já o líquido que sai da massa de mandioca é armazenado durante três dias para, posteriormente, ser utilizado como fertilizante natural”, comenta Maria.

Ela conta que aprendeu a produzir farinha com os pais, ainda aos 10 anos de idade, e foi algo passado de geração em geração pelos seus familiares.

“A farinha de mandioca na minha comunidade é sustento, tradição e ancestralidade. Na minha vida, é a base do sustento da minha família, e é por meio dela que eu consigo alcançar espaços positivos no mercado de produção rural, assim como outros produtores”, conclui Maria José.

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