123 Milhas: Modelo de negócio insustentável a longo prazo?
Empresa declara recuperação judicial e vem causando insatisfações ao suspender passagens e pacotes aéreos, abrindo questionamentos com relação ao modelo de negócio

Na sexta-feira, 18 de agosto, a agência de viagens 123 Milhas causou agitação ao anunciar a suspensão da emissão de passagens ou pacotes da linha promocional, conhecidos como os pacotes flexíveis. A plataforma, que iniciou as vendas dessa modalidade, anunciou o cancelamento de viagens contratadas na linha PROMO com datas flexíveis que teriam embarques previstos de setembro a dezembro de 2023.
Segundo uma nota divulgada, a empresa comunicou que estaria buscando a melhor forma de atender a todos os clientes que buscarem negociações e respostas quanto aos pacotes e passagens adquiridas. A 123 Milhas afirma que os clientes serão ressarcidos integralmente por meio de vouchers, com acréscimos da correção monetária de 150% do CDI ao mês pela compra dos produtos cancelados.
Na segunda-feira, 28, funcionários da empresa divulgaram que a 123 Milhas teria feito demissões consideráveis nos setores de recompra, promo e emissão, o que reflete claramente na instabilidade do negócio. A empresa confirmou a redução no quadro de funcionários, mas não divulgou a quantidade de colaboradores que teriam sido desligados. Na tarde desta terça-feira, 29, o site de notícias G1 divulgou a notícia de que a agência de viagens 123 Milhas entrou com pedido de recuperação judicial. O requerimento foi feito à 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte, em Minas Gerais, onde fica a sede da empresa.

Ainda este ano, outra empresa com o modelo de negócio semelhante também passou por uma série de problemas relacionados à falta de entrega em pacotes com datas flexíveis. Para falar sobre o assunto, a equipe da redação Start conversou com consumidores e profissionais para esclarecer os passos que o cliente deve seguir e para discutir a instabilidade do modelo de negócio.
A decisão da 123 Milhas causou revolta em muitos consumidores, como é o caso do empresário amazonense Diego Sales, que adquiriu o pacote há nove meses e faria sua viagem no início de setembro. Ele afirma que foi atraído pelos valores e pela forma de pagamento, que poderia ser feita parte em dinheiro e parte em boleto. O empresário sairia de Manaus até Porto Alegre com a família, e iria de carro até Canela, cidade do interior do Rio Grande do Sul, para visitar a mãe.
Diego compartilha ainda que havia feito reservas de veículos, hotéis e restaurantes para passar uma temporada na região e feito a compra de alguns passeios. Ele afirma que após o anúncio da suspensão de aéreos e pacotes, recebeu um e-mail informando que a empresa não emitirá os bilhetes e que o valor pago será devolvido em forma de voucher. Insatisfeito, o consumidor ressalta que os vouchers oferecidos serão divididos e não serão devolvidos integralmente, e que os valores no site da empresa subiram consideravelmente após a decisão. Como medida, o consumidor teve que pedir reembolso ou deixar como crédito em suas reservas de veículos, hotéis, restaurantes e passeios que havia feito.
“Muita gente foi prejudicada com essa decisão e eu acredito que os culpados precisam ser punidos, porque tem muita gente assim como eu e minha família, que comprou passagens para o ano que vem. Eu tenho certeza que eles não vão dar essas passagens também. Infelizmente muita gente deixou de visitar a mãe como eu, deixou de ir a compromissos, aniversários, coisas importantes por conta da irresponsabilidade ou da má conduta que a 123 Milhas tem causado aos seus consumidores”, comenta.
Falando do ponto de vista de negócio, Renata Niada Engel, advogada do Perroni Sanvicente & Schirmer Advogados, afirma que a grande dificuldade do modelo instituído por eles por meio da comercialização dos pacotes flexíveis é a diferença entre o valor ofertado em relação ao valor cobrado do consumidor. Isto porque os pacotes flexíveis têm um preço muito abaixo do valor normal de mercado caso o consumidor fosse adquirir a sua passagem e/ou hospedagem de outra forma e, para assegurar o valor mais baixo, era necessário que o consumidor aceitasse eventuais ajustes no dia e hora da viagem.
No entanto, ela explica que conforme as restrições de circulação impostas em decorrência da pandemia foram sendo eliminadas e, consequentemente, aumentou a demanda por passagens e hospedagens, o valor total das viagens naturalmente passou a aumentar, gerando uma incompatibilidade entre os custos dos pacotes e o valor ofertado aos consumidores, resultando em prejuízo. Por isso, Renata ressalta que esse modelo, da forma estruturada pela empresa, não é sustentável.

“É um modelo de negócios que não é sustentável, pois eles não levam em consideração a variação natural dos preços dos bens e serviços de acordo com a procura e a demanda. Havendo maior demanda, os preços tendem a aumentar e, portanto, inviabilizar as ofertas propostas pela empresa em valores substancialmente menores aos valores praticados pelo mercado nesse segmento”, explica Renata.
Já Gustavo Chaves Barcellos, sócio do escritório de advocacia Silva Lopes, compartilha que o grande problema que esse tipo de negócio possui é criar uma estruturação em cima de situações que não estão totalmente no controle operacional da empresa. Ele afirma que o mercado pode sofrer com variações de mercado, com cancelamentos de voos, aumento de passagens aéreas, questões de overbooking, entre outros aspectos que fogem do controle desse segmento.
Segundo ele, empresas como Hurb e 123 Milhas, que têm seguido o modelo de negócio com viagens flexíveis, estão sofrendo reflexos de uma demanda reprimida, com uma alta na procura por passagens aéreas. Consequentemente, ele explica que as empresas aéreas estão sendo bastante exigidas, e as passagens estão com valores cada vez mais altos. Esse é um fator que foge do controle de empresas que seguem esse modelo, que fazem intermediação e oferecem uma promessa de possibilidade de viagem futura. Gustavo afirma que esse cenário dificulta em inúmeros fatores que fogem do controle e impactam diretamente na operação.
Com relação à intervenção governamental com relação ao modelo de negócio, Gustavo explica que isso acarretaria em uma descontinuidade desse tipo de prestador de serviço. Segundo ele, o modelo de negócio em si é totalmente lícito e pode ser implementado para diversos segmentos do mercado. Mas esperar que, por conta de um problema que ocorreu, o governo intervenha em provedores que fazem algum tipo de intermediação de um produto ou serviço, é simplesmente tornar esse segmento tecnológico mais caro e menos atrativo para o consumidor final. Gustavo ressalta que qualquer tipo de regulação governamental em plataforma tecnológica vai impactar em aumento de custos, maior burocracia e tornar menos atrativa a população em geral.

“As medidas necessárias que o governo deve tomar neste caso em específico é acionar o PROCON ou a Secretaria Nacional do Consumidor, secretaria nacional do consumidor, poder judiciário, para que individualmente, na medida da responsabilidade de cada um, para que as pessoas sejam devidamente ressarcidas. Obviamente que tem que se exigir da 123 Milhas um posicionamento, uma mudança no seu modelo de negócio para que um problema como esse não aconteça novamente. Mas isso não se confunde com tentar regular atividade desempenhada pela empresa ou como qualquer outro intermediador de negócio, sob pena da gente não ter involução tecnológica e mercadológica”, explica Gustavo.
Já Renata compartilha que o Brasil já conta com uma legislação que protege bastante os consumidores para evitar que eles sejam lesados e para que busquem a reparação de eventual dano sofrido por eles, então esse é um ponto positivo que coíbe ou desestimula o desenvolvimento de atividades que são desenvolvidas em detrimento dos consumidores. Agora, a advogada esclarece que é necessário que o modelo de negócios seja devidamente avaliado para, se necessário, normas adicionais sejam impostas às empresas que desenvolvem atividades semelhantes com venda de milhagens.
“Há algum tempo, a 123 Milhas já vem sendo alvo de algumas discussões a respeito da sustentabilidade da sua atividade empresarial, pois era significativa a diferença dos valores praticados pela empresa e as demais empresas nesse segmento. Porém, por outro lado, a 123 Milhas também era, até então, uma empresa consolidada no mercado, com inúmeros consumidores realizando as compras e viajando tranquilamente, com investimentos massivos em marketing, o que permitia que os consumidores presumissem que se tratava de uma empresa séria. Nesse cenário, a suspensão imediata da emissão dos pacotes flexíveis não era fácil de prever por parte dos consumidores”, ressalta Renata.
Gustavo reforça que não existia uma forma de prever de forma assertiva a situação, mas os riscos eram claros devido a escolha do modelo de negócio da 123 Milhas.
“Qualquer um que utilize plataformas de intermediação, que faz compra e venda de qualquer ativo de terceiros em teu benefício, tem que estar muito atento às regras de funcionamento das plataformas, porque elas detêm um risco maior do que os segmentos tradicionais. Isso advém de uma sistemática com um grau de risco consideravelmente maior, isso é importante que fique muito claro para a empresa, muito claro para as autoridades e muito claro para os consumidores”, conclui Gustavo.