Alimento não é resíduo: uma reflexão sobre a evolução da nossa relação com a comida

12/9/23
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Redação Start

Por Alcione Pereira, Fundadora e CEO da Connecting Food

Foto: Marcelo S. Camargo
Foto: Marcelo S. Camargo

Em muitos âmbitos, temos visto a tentativa de resgate de comportamentos e relações antigas, ancestrais. E eu me pergunto se não será também o momento de resgatarmos essa relação ancestral nossa, dos seres humanos, com o alimento, porque hoje ele é visto como mais um item da lista de compras, no mesmo nível de outras coisas que “temos que ter”, pela posse. Mas não foi sempre assim.

Após o término da 2ª Grande Guerra, o mundo passou por uma ampla crise de valores, em todos os níveis. Os anos de conflito trouxeram uma importante quebra na produção de alimentos e isso resultou numa mobilização global para voltarmos a produzir, para suprir as necessidades de um planeta fragilizado e que, agora, tinha a necessidade de se reconstruir. Nessa época, nasceram os baby boomers, responsáveis pelo aumento populacional no período pós-guerra, e era preciso dar comida a essa gente toda.

As fábricas de pólvora passaram a fabricar fertilizantes, para dar início à primeira grande revolução verde, com o intenso cultivo de alimentos e desenvolvimentos tecnológicos importantíssimos. Alguns anos depois, vimos outro enorme boom, agora na industrialização, e a publicidade gerando a revolução do consumo, influenciando a vida cotidiana e trazendo a massificação de muitos artigos, inclusive da comida. A abundância se tornou uma necessidade, mas não demos atenção para o fato de que ela também era sinônimo de excesso.

O significado do alimento se transformou, então, ao longo do século passado. E foi essa produção massiva – que teve os seus bons motivos, não há como negar – que gerou uma superprodução, resultando em desperdício, um dos maiores problemas da cadeia alimentícia de todos os tempos.

Aos poucos, o alimento foi comoditizado e os seus excedentes passaram a ser considerados como resíduos. Vemos isso na matriz criada pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA), a Food Recovery Hierarchy. Mas, por que não repensar essa maneira de encarar a comida que perde valor comercial? Não que esteja incorreta a Food Recovery Hierarchy.

Ao contrário: ela coloca a redução dos excedentes de produção em primeiro lugar, seguida da doação do que acabar sendo gerado a mais, depois a alimentação animal, o uso como fertilizante para novos cultivos, a compostagem e apenas no final, o descarte daquilo que não é possível ser utilizado em nenhuma das opções anteriores. Mas o fato é que tudo isso pode ser visto sob outro prisma, para ressignificar e trazer humanidade a essa hierarquia, proporcionando uma verdadeira recuperação do alimento dentro de uma estratégia social. A doação, uma das formas de se fazer essa ressignificação, entra justamente no S da agenda ESG.

Por falar em ESG, não podemos deixar de fazer a associação também com a primeira letra da sigla, já que as revoluções verdes que vimos especialmente a partir da década de 1950, trouxeram o uso abusivo de pesticidas e agrotóxicos. Em última instância, e junto com o excesso de produção, isso também transformou o meio ambiente, no caso, para pior. Esses excedentes do campo, e também da indústria pouco tempo depois, tornaram-se resíduos, muito sob influência da publicidade acerca da praticidade do alimento.

Ao mesmo tempo em que se queria fazer com que a comida estivesse disponível a todo o mundo, ela deixou de ser algo essencial para a manutenção da vida, para ser um bem de consumo e até de status social, no caso de alguns itens que só são acessíveis a certas classes. O final dessa história, que infelizmente está longe do fim, nós conhecemos bem: o paradoxo entre a abundância na produção de alimentos e um número cada vez maior de seres humanos sem ter o que comer.

Deixou de existir a conexão com o alimento, com a sua origem e propósito (nutrição, combustível para a vida), para passarmos a ter uma relação de consumo.

Olhando para trás, para os eventos históricos, dá para entender como e por quê chegamos aqui. Mas já percebemos que não é possível aceitar que seja assim. Ainda bem, porque é graças a esse inconformismo que muitas pessoas, empresas, organizações de todos os tipos e governos estão se empenhando em mudar o cenário do desperdício. A doação desses excedentes é um dos “comos”, é uma forma de dar um destino mais adequado aos alimentos que ainda têm o potencial de manutenção da vida. Se eles são simplesmente jogados fora, deixam de cumprir esse papel, o que é um contrassenso.

É preciso restabelecer o mindset da nutrição, do alimento como aquilo que nos permite viver e realizar. E, a partir daí, perceber que os excedentes existem por uma conjuntura comercial, mas não significa que sejam resíduos descartáveis, porque ainda são alimentos e têm que ser tratados como tal. Podem ter perdido valor comercial na cadeia, mas continuam a ter valor social, humano.

Mini Bio Alcione Pereira*

Engenheira de Alimentos, Mestre em Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas e MBA em Gestão Empresarial, Alcione Pereira é Fundadora da Connecting Food – uma foodtech de impacto social que trabalha na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Além disso, ela é coidealizadora do Movimento Todos à Mesa – primeira coalizão de empresas brasileiras unidas para a redução do desperdício de alimentos e combate à fome –, e cofundadora do Pacto Contra a Fome – um movimento suprapartidário e multissetorial que nasceu para acabar com a fome no Brasil até 2030. atua como consultora técnica em projetos relacionados à cadeia de suprimentos humanitária, incluindo a redistribuição de alimentos oriundos do desperdício, para a FAO/ONU e Ministério da Cidadania.

Sobre a Connecting Food:

Fundada em 2016 pela engenheira de alimentos Alcione Silva, a Connecting Food é a primeira foodtech brasileira de impacto social focada na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Ou seja, por meio da conexão entre empresas e Organizações Organizações da Sociedade Civil (OSCs), a empresa  contribui para o combate ao desperdício de alimentos, a fome e ajuda o setor privado no cumprimento da agenda ESG.

Frente ao negócio social, a jovem fundadora e CEO Alcione Silva, engenheira de alimentos, especializada em desperdício, dedica-se há mais de 20 anos a estudar a alimentação e seus processos de distribuição. Temática que vem ganhando importância nos debates mundiais e que atualmente, com a crise gerada pela Covid-19 e seus desdobramentos sociais, deve se intensificar nos próximos anos. Para a CEO, as proporções do desperdício de alimentos em todo o planeta são imensas. Igualmente imenso é o número de pessoas com algum grau de insegurança alimentar.

A foodtech que hoje atende mais de 440 Organizações da Sociedade Civil (OSCs) em 144 cidades de 23 estados do país, oferece inteligência e eficiência para fomentar o desenvolvimento sustentável de forma inovadora em organizações dentro do setor alimentício, contribuindo diretamente para que os alimentos ainda bons para consumo, mas sem valor comercial, sejam distribuídos para pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Até o momento a empresa já auxiliou na redistribuição de mais de 9 mil toneladas de alimentos que seriam desperdiçados, garantindo o complemento de mais de 17 milhões de refeições na mesa de brasileiros. Entre o portfólio de clientes estão: Grupo Pão de Açúcar, iFood, Assaí Atacadista, Proença Supermercados, Nestlé, Bauducco e Danone.

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